olhos de púrpura

madalena
3 min readApr 8, 2021

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autoral.

não que seja animalesco produzir pensamentos (repletos de mesuras) sobre todas as coisas que eu não fiz. tudo que transpassa a taquicardia corre para as pernas trêmulas e termina na cabeça. tudo finda no córtex, não no beijo. assim, nós percorremos o caminho prosseguido do descuido e do querer, este como força que tudo move e tudo, obviamente, desmonta. temos nossa base. volto ao animalesco, por remeter ao sentido instintivo da coisa. o querer beira uma instituição íntima, bem intrínseca. o ato de querer é fúria, dendê, olhos que desafiam e esfaqueiam… no risca-faca que eu ouvi você dizer.

que você era a mulher mais perigosa do meu círculo.

nas esquinas da minha casa, sempre pintava um passarinho muito astuto. morei lá por anos e lembro que todo dia ele aparecia. era azul com traços pretos e sempre roubava alguma bicada de banana da minha cozinha. era fofoqueiro, sempre sabia quem discutia com quem ou quem pedia quem em namoro. no final da tarde, sabia pra onde voar e pra onde se esconder até o horário perfeito de roubar outro pedaço de banana. vez ou outra arranjava briga com outro pássaro e ficava uns dias sem aparecer. voltava quando queria.

me volto a perguntar como são seus olhares hoje, já que não almoça naquele restaurante que a gente gostava, toda segunda-feira. dia que eu te chamava pra ir na gira e você dizia que ia, com certeza. mas o trabalho acabava mais tarde e, por conta de uma coisa ou outra, você tinha que ficar. nas quartas, eu seguia do psicólogo até o teu ouvido, era dia de falar… gritando sobre o que aconteceu na novela de ontem e, depois, em tom baixinho, sussurrava o cúmulo de tudo que era mais profano e inescrupuloso. você ria mostrando os dentes e eu ficava com vergonha das pessoas notarem que você me olhava diferente. torno a me perguntar como que você vive o mundo hoje, sendo que não me vê mais.

tampouco que eu seja o centro do sistema astrológico que rege todos os seus passos no sol de libra, mas tenho a presunção de que, por algum deslize, seja o meu nome que vem na sua goela. mas você me engole e eu finjo te desconhecer em todos os lugares que nos esbarramos. sob o puro ar soberbo e imaturo de dizer (ou esconder) que gostaria de ter vivido bem mais do que escrevi sobre as inúmeras vezes que você atravessou a rua e perguntou se eu queria te acompanhar.

queria ter descoberto

se seus olhos mudam de cor, se o cigarro que você fuma ainda é o mesmo, se ainda lembra da camisa que deixou na minha casa… ou se eu era só a cor que você passou nos lábios e lavou no banheiro minutos depois, porque a cor do batom não era a cor que deveria estar naquela mistura de roupas e ocasiões. eu nunca troquei um beijo com você, mas juro por qualquer crença que eu sei de cor. de tanto ensaiar, tanto metrificar, tanta falta de pudor… eu sei exatamente como seria.

volto a dizer: tudo termina na cabeça.

e tudo também se começa. o coração só se mune quando a cabeça serve o prato, a cabeça é a fortaleza. a fome do que eu sinto beira o insaciável, mesmo sabendo que cozinhar pode ser um campo inteiro minado, pode ser a faca que rasga uma parte do dedo, o tempero errado, o tempo de cozimento que deixa mole demais, ou a receita que se acerta de primeira e nem sobra pro requinte de mais tarde. aniquilando todas as penitências e incentivando o ‘comer mais um pouco’, já que lambemos os pratos e os talheres.

não sei se canso de perguntar de ti ou se juro de matar o governador. se corto mais o cabelo, pinto as pontas e dirijo um longa-metragem… que aposto que você estaria na sala pra ver. porque o teu instinto, como eu já suponho, vai muito além desse silêncio fajuto de quem diz que não, que não vai querer saber, mas sem eira nem beira, vai arranjar desculpas para aparecer, do nada vai se propor a estar… e tudo que eu consigo pensar é

tudo isso só pra me olhar?

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